Nos últimos dias os atentados na França tomaram os
noticiários e demais veículos de comunicação. Mas o que tem reverberado em meus
pensamentos são as seguintes questões: “Por que parece que nos comovemos muito
mais com os atentados na França que mataram 17 pessoas, do que com as 2 mil
mortes nos últimos atentados terroristas na Nigéria?”; “Por que a pouca
divulgação e mobilização em relação ao que vem acontecendo ostensivamente na
Nigéria?”.
A primeira imagem que me saltou na mente como uma possível resposta
foi o ícone da “Casa Grande e Senzala”. Longe de achar que não temos que nos
consternar com as perdas de vidas na França em atos de violência terrorista e a
ameaça a liberdade de expressão, mas o que vem absurdamente acontecendo na
Nigéria, que de forma extremada avilta a nossa própria condição de convivência
humana, pela quantidade de mortes; pelo tempo em que vem ocorrendo; pela
crueldade com que as vidas são ceifadas; pelo completo desrespeito aos Direitos
Humanos, deveria ter ocupado os meios considerados “nobres” de comunicação, a
chamada “grande mídia”, tanto para nos informar mais sobre as ocorrências
quanto para demonstrar a resposta do mundo aos fatos.
O que incomoda é o fato de que as atrocidades que vem
acontecendo na Nigéria desde o ano de 2009 – somando um contingente aproximado
de 10 mil mortes, além de ações como sequestros de 100 mulheres, uso de
crianças para portar bombas em ataques, fechamento de escolas, entre outros – não
tenham sido, até o presente momento, objeto de uma mobilização mundial como a
ocorrida após um único ataque na França. Pra termos uma idéia da gravidade do
que vem ocorrendo na Nigéria, segundo as autoridades, é uma crise humanitária
em que mais de três milhões de pessoas são afetadas. “A insurgência no nordeste
da Nigéria, travada pelo grupo militante islâmico Boko Haram, é hoje uma das
campanhas mais mortíferas na África” (2015, BBC África).
Mas o que está oculto nessa história? Por que foi preciso
que algumas personalidades – a exemplo do Arcebispo Ignatius Kaigama dizendo
que “a mobilização internacional contra o extremismo não pode ocorrer somente
quando há um ataque na Europa” – e alguns grupos se manifestassem, reclamando a
pouca atenção à região africana para que algumas notícias e chamadas em
jornais, e até mesmo uma reportagem no programa Fantástico (Rede Globo),
dissesse algo sobre as ações do Boko Haram na Nigéria? Volto a dizer, só
consegui respostas considerando o mito da “Casa Grande e Senzala”. Não vencemos
esse mito, que parece ainda estar arraigado em nós. A Europa, a França
representa a Casa Grande dos Senhores, dos “patrões”, dos mandatários e a
Nigéria não passa da Senzala, da Casa dos Escravos, do negro servil ao homem
branco. Nessa lógica – sem lógica alguma em termos de relações humanas e
diversidade cultural –, pra que vamos nos preocupar tanto com esses negros?
Exemplo disso foi o que ouvi da boca de alguém que se diz “intelectual”:
“Morrem muitos na África, mas são muitos e eles são tão ignorantes, matam-se
uns aos outros e agora aderiram ao extremismo do Estado Islâmico, sinal de
pouca cultura, de pouco entendimento”. Essa expressão “são muitos” quer nos
dizer o quê?
Que justifica-se o massacre pela quantidade de pessoas que vivem
por lá? Dizer que se matam uns aos outros, quem são os outros, quem somos nós?
Não somos todos um único povo, uma única aldeia, ou o discurso da globalização
só é preponderante pela conveniência do momento e da situação da vez? Dizer que
são ignorantes, facilmente influenciáveis é muito cômodo, pois nada mais é do
que renegá-los a uma condição de inferioridade como sempre fizemos. Quem teria
que responder pelos poucos investimentos em desenvolvimento nesses países?
A Europa hoje decadente economicamente – e que se fez pela
colonização exploratória no passado de outros países, entre eles, países do
continente africano –, inclusive dependendo hoje da mão de obra de imigrantes
negros, insiste, pela nossa própria condescendência, em ser “superior” – até
mesmo na dor. Lembrei-me de alguns colegas moçambicanos da turma do Mestrado
que sempre reclamavam da nossa visão estereotipada em relação a eles, como se
todos lá vivessem em tribos, pois as perguntas a eles direcionadas eram na
maioria das vezes sobre as savanas, pouco era lembrado da vida urbana de
Moçambique, comum a todas as cidades grandes com suas intempéries.
Hoje, dia 27 de janeiro, “Dia Internacional da Lembrança do
Holocausto”, em que rememoramos o genocídio nazista em massa contra os judeus
(e também a outros como: ciganos, poloneses, comunistas, homossexuais,
prisioneiros de guerra soviéticos e deficientes físicos e mentais), com uma
estimativa de 11 milhões de mortes, é pra nós uma fundamental referência para
refletirmos sobre as atuais mortes e guerras por grupos extremistas no mundo.
Intolerância, discriminação, preconceito e a utópica possibilidade de uma
classificação da humanidade entre “raças” superiores, ou o que agora tem sido
tão insistente, uma ideologia política e religiosa superior. A eterna
justificativa “dos meios pelos fins” e nestes casos, fins nada nobres e meios
ainda mais absurdos. Mas o que se destaca em meio as minhas preocupações é que
as ações de Hitler e seus seguidores nazistas foi uma loucura assumida,
anunciada e propagada e hoje, ao mesmo tempo em que apontamos os extremistas
radicais da atual sociedade, nas diferentes partes do mundo, não estamos
fazendo o exercício de buscar em nós os nossos próprios extremismos, nossas
próprias ideologias e crenças. Essa revisão tem que acontecer, para o bem de
todos nós e pela saúde de nossa sociedade mundial. Mas ela tem que partir da
seguinte indagação direcionada a cada um de nós:
“O QUE REALMENTE ME INCOMODA?”
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REFERÊNCIA
CHOTHIA, Farouk. Boko Haram: como os militantes nigerianos ficaram tão
poderosos?. BBC África. 2015. Disponível em <http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2015/01/150126_boko_analise_lk> Acesso jan 2015
BBC Brasil. 2015. Disponível
em <http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/arcebispo-reclama-de-falta-de-atencao-do-ocidente-massacres-na-nigeria.html> Acesso jan 2015.
IMAGENS (disponíveis na internet, pesquisa por imagem, www.google.com):
- Engenho Noruega - ilustração de Cícero Dias - Casa-Grande & Senzala (FREIRE, Gilberto. 1993)
- Boko Haram demands prisioner swap for kidnapped girls (www.dailymail.co.uk)
- Dia do Holocausto (www.aquieuaprendi.blogspot.com)
- Engenho Noruega - ilustração de Cícero Dias - Casa-Grande & Senzala (FREIRE, Gilberto. 1993)
- Boko Haram demands prisioner swap for kidnapped girls (www.dailymail.co.uk)
- Dia do Holocausto (www.aquieuaprendi.blogspot.com)